Os Lusíadas (V, 37-60)
Terminada a narração da História de Portugal, Vasco da Gama (narrador
homodiegético) vai contar ao rei de Melinde como decorreu a sua viagem de
Lisboa até ali.
Mais uma vez, realidade e fantasia se misturam, pois a par da indicação do
percurso geográfico efetuado aparecem episódios fantásticos.
O episódio do Gigante Adamastor representa de um modo simbólico a
desproporção de forças: por um lado, a fragilidade das naus e dos homens a
bordo, por outro, a fúria do mar, magnificamente personificada por este gigante
aterrador.
A esquadra de Vasco da Gama, “cortando/[o]s mares nunca outrem navegados” (Lus,
V, 37, 2-3), depara-se com “[u]ma nuvem que os ares escurece” (Lus, V,
37, 7), que amedronta os “corações” dos bravos marinheiros. E descreve o
“monstro horrendo”: uma figura “robusta e válida / De disforme e grandíssima estatura”, e com o
“rosto carregado, a barba esquálida / Os olhos encovados, e a postura / Medonha
e má”, de “cor terrena e pálida”. Seus cabelos estavam “cheios de terra e
crespos” e tinha “a boca negra” e “os dentes amarelos”. Fala com um tom de voz
“horrendo e grosso” que parecia “sair do mar profundo”, e até causava arrepios.
o Adamastor é um gigante baseado
na mitologia greco-romana. No épico lusitano, representa as forças da natureza
contra Vasco da Gama, ameaçando os que tentavam dobrar o Cabo da Boa Esperança
e, assim, chegar ao Oceano Índico. No poema, a representação do cabo, o gigante
Adamastor, está no canto V, ou seja no meio do poema “eu sou aquele oculto e
grande cabo” (Lus V, 50, 1). Não é por acaso que “o grande cabo” está
nesse ponto equidistante, visto que representa a passagem para o Oriente, que,
no épico, figura o encontro com o desconhecido, “no cabo se refugiavam os medos
perseguidos pelas naus, mas conservados no fundo de cada um dos que partiam ou
ficavam. E esses medos assumiram, dentro da tempestade, forma sobre-humana
grande bastante para se opor à passagem dos navegantes”.
Como se trata da personificação do cabo da Boa
Esperança, pode dizer-se que se trata da vingança da Natureza sobre os
portugueses, sob a forma dos medos que os marinheiros portugueses tinham de
monstros horrorosos que faziam naufragar as naus e tirar as vidas a muitas
pessoas. Eram os monstros que simbolizavam o desconhecido, mas também o
fantástico. Eram ainda os guardiões dos tesouros, pois para lá deles situava-se
a Índia, fonte de riquezas e sonhos. Era portanto necessário haver um guarda
realmente muito poderoso para que só conseguissem passar os mais merecedores,
os mais valentes e ousados.
O gigante Adamastor começa por dirigir-se aos
portugueses de uma forma muito agressiva e imperiosa, com a intenção de os
amedrontar. Esta primeira parte do encontro é uma espécie de julgamento
sumário: o gigante começa por acusá-los dos crimes de irem aonde era proibido,
de invadirem o seu território, de tentarem desvendar os segredos que ele
guarda, o que a nenhum humano era permitido fazer, por mais heróico ou poderoso
que fosse (“os vedados términos quebrantas / E navegar meus longos mares
ousas”; “Pois vens ver os segredos escondidos”; “A nenhum grande humano
concedidos / De nobre ou imortal merecimento”).
Não há lugar para defesa, Adamastor passa logo a
ditar a sentença: serão castigados pelo seu atrevimento, pois todas as naus que
ali passarem sofrerão enormes tempestades. Haverá ainda uma vingança mais
terrível para a primeira que ali passar depois deles - “quantas naus esta
viagem”; “fizerem, de atrevidas / Inimiga terão esta paragem / Com ventos e
tormentas desmedidas! / E da primeira armada”; “Eu farei de improviso tal
castigo, / Que seja mor o dano que o perigo”. Mas ainda não acabaram as
sentenças. O homem que o descobriu e passou será severamente castigado, bem
como o primeiro vice-rei da Índia, todos junto dele (“Aqui espero tomar, se não
me engano, / De quem me descobriu suma vingança”; “E do primeiro Ilustre”;
“Serei eterna e nova sepultura”).
Mas depois desta demonstração
de cólera e ódio, Vasco da Gama recuperando do primeiro susto e admirado por
esta estranha figura, pergunta-lhe quem é. Diante dessa interrogação quanto ao “corpo” e não quanto à voz, ou seja, quanto
ao que se vê e não ao que se ouve, o gigante conta a Vasco da
Gama a história do seu amor infeliz, um amor por uma ninfa. Ao saber do
infortúnio do gigante, o herói português vê-se diante de um Adamastor fraco,
que não tinha mais segredos. O gigante perturbado por ter “revivido” verbal e
mentalmente a sua história, nem se apercebe que, quando acaba o seu discurso
autobiográfico, já os portugueses vão longe. O gigante não morreu, mas depois de contar seus desenganos “co`um medonho
choro”, “desfez-se”, e assim só se ouve o mar “bramindo”, da mesma forma como
quando esse desafio aos navegantes começou, não conseguindo, portanto, demover os
portugueses do seu objetivo: a descoberta do caminho marítimo para a Índia,
sendo em “Os Lusíadas” o maior obstáculo transposto pela coragem e
determinação dos bravos marinheiros lusitanos.