Passaram-se cinco dias de
navegação calma quando, de repente, numa noite, uma nuvem escura nos aparece.
Vinha tão carregada que ficámos cheios de medo. Tanto que pedi ajuda a Deus.
Mal começara a rezar, quando se nos apresenta aos nossos olhos uma figura
enorme, gigantesca e horrenda. Tinha o rosto carregado, a barba esquálida, os
olhos encovados, a cor terrena e pálida; toda a postura era medonha e má. Tinha os cabelos cheios
de terra e crespos; os dentes eram amarelos e a boca negra. Além disso,
falou-nos em tom de voz horrendo e
grosso/que pareceu sair do mar profundo. Por isso ficámos, eu e todos,
arrepiados. E disse em tom irado:
-
Ó gente ousada, já que, ultrapassando os limites proibidos, ousas navegar nos
meus mares, que nunca foram sulcados por nenhum humano, e vens ver os segredos
escondidos da natureza e do mar, o que é vedado aos humanos, ouve os castigos
que reservo para o vosso atrevimento. Sabe que, daqui para a frente, todas as
naus que fizerem esta viagem me terão como inimigo e eu farei com que haja naufrágios, perdições de toda a sorte/que o
menor mal de todos seja a morte.
Será o caso de Bartolomeu Dias, que foi quem me descobriu e
em quem me vingarei. O mesmo vai suceder a Dom Francisco de Almeida, primeiro
vice-rei da Índia, que aqui morrerá, no seu regresso à pátria. E será o caso de
Manuel de Sousa Sepúlveda, que naufragará por estes sítios, com sua mulher
amantíssima e com os filhos. Antes de morrerem abraçados, verão morrer com
grande sofrimento os seus filhos, gerados de tanto amor, e serão sujeitos a
maus tratos pelos negros indígenas.
Mais ia a dizer o monstro
horrendo, quando, de pé, o interpelei, perguntando, sem mostrar receio:
- Quem és tu? Que esse estupendo corpo, certo
me tem maravilhado!
E
então algo de estranho se passou. Dando um espantoso
e grande brado, respondeu-me, com voz amarga, como se a pergunta o tivesse
magoado:
-
Eu sou o Cabo que vós chamais de Tormentório ou das Tormentas, desconhecido dos
grandes geógrafos antigos. Aqui termino toda a costa africana.
Fui
um dos gigantes que defrontaram os deuses do Olimpo, em guerra sangrenta. O meu
nome é Adamastor e coube-me, como missão, defrontar Neptuno. No entanto,
apaixonei-me por Tétis, a princesa das
águas, e por ela desprezei todas as restantes deusas. Aconteceu um dia em
que a vi nua na praia, acompanhada das Nereidas. A partir daí senti-me
irremediavelmente preso.
Tendo
consciência de que seria difícil alcançá-la, dado que sou muito feio, decidi
tomá-la pela força das armas e fiz saber isto a Dóris, sua mãe, para que ela
pudesse convencê-la a aceitar-me. Dóris foi então falar com ela e ela
respondeu-lhe: - Qual será o amor
bastante de ninfa que sustente o de um gigante? No entanto, eu vou
encontrar uma maneira de evitar a guerra, sem ficar prejudicada ou desonrada.
Fiquei
convencido e, ingenuamente, desisti da guerra. Numa noite prometida por Dóris,
apareceu-me o gesto lindo da branca
Tétis, única, despida. Corro como louco para ela, procurando abraçar aquela que
era a vida deste corpo e beijando-lhe as faces e os cabelos.
Mas,
e nem sei como contá-lo, achei-me abraçado, não à minha amada, mas a um duro
monte, frente a um penedo, e eu próprio transformado em penedo! Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano, /já que
minha presença não te agrada, / que te custava ter-me neste engano, /ou fosse
monte, nuvem, sonho, ou nada?
Por
esta altura já todos os meus irmãos tinham sido vencidos e transformados em
montes e também eu comecei a sentir que me transformava neste Cabo. Mas o que
mais me dói ainda é que, por mais
dobradas mágoas, /me anda Tétis cercando destas águas.
Assim
contava o Gigante e, chorando, afastou-se de nós. Eu então fiz uma prece a
Deus, pedindo-lhe que as profecias do Adamastor se não viessem a verificar.
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